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Caderno de campo da Transamazônica (em construção)

«Meu destino é correr mundo mesmo», Iracema em Uma Transa Amazônica.

  1. “Charles”20180703_183742

Tomamos café em Medicilândia logo depois de passar pela cara gigante do Bolsonaro no outdoor. Eu fico matutando dentro da minha cabecinha: “MÉ-DI-CI… lândia”. Saio do ônibus e falo pro motorista: “ooooo homi calorento”.   “É frio mesmo”, ele diz.

Entre Medicilândia e Uruará, dentro do micro da COTAIT, uma senhora reclama: “Tá espirrando água do ar-condicionado, seu motorista. Que ar frio é esse? Não tô em Curitiba não”.

Para fugir da chuva artificial, Charles senta ao meu lado. Duvido que esse seja seu nome verdadeiro. Vejo com o canto do olho que ele traz uma faquinha de serra dentro da mochila. Reparo na pontinha brilhante.

Sem muitas delongas ele espontaneamente conta que trabalhou uma semana numa roça de cacau. É tipo trabalho análogo à escravidão. Olha aqui a minha mão calejada. Enquanto eu estava lá, dois foram picados por escorpião.

É uma isca. Num sou peixe ainda.

Não morreram, segundo ele. Ninguém morre disso, completa.

Ganhou 50 reais por diária. Gostou do que viu. Nunca conviveu com povo mais feliz. As pessoas dormiam e acordavam rindo. Quer comprar uma terra e trabalhar com isso.

Vem de São Paulo. É comerciante e está a caminho de um rodeio, onde venderá cachaça e outros tragos. Estive no mesmo rodeio uns dias depois. Fui levada por uns amigos que fiz pegando carona no Balneário Recanto em Uruará. Eles também se dedicavam à venda de bebidas em eventos do interior.

Até então a história de Charles tinha alguma coerência, mas, não mais que de repente, ele bota tudo a perder: “Morei em mais de quarenta países: Uzbequistão, Turcomenistão, Estados Unidos, todos os países da América Latina. Em todos os estados do Brasil”.

Ele vai bem na geografia, mas se perde quando eu o testei sobre sua temporada no México. Ele dá a desculpa que só conheceu Guadalajara mesmo, nem saiu de lá. Não sabe localizar Acapulco no mapa. Diz que não é necessário dinheiro para viajar e dá uma piscadela forçada e performática. Acrescenta um clic com a língua, como se já não bastasse o gesto. Pergunto como ele faria para ir ao Canadá de carro. Quase que o meu amigo tropeça no canal do Panamá.

Ele me testa. Joga verde. “Você precisaria de pelo menos mais três faculdades para começar a entender isso aqui e fazer este seu trabalho: Agronomia, Direito e Economia”, conclui.

Concordo.

Ele infere que sou dos “direitos humanos”. No outro ônibus, concluíram que eu era ambientalista e que deveria ir negociar com os índios Araras que estavam fechando a estrada. Os “pajés” iam deixar o ônibus passar se soubessem que eu era “ambientalista”. Eu não havia nem aberto a boca. Deve haver algo de errado com o meu cabelo. Eu já sabia disso… ele me delata. Devo sempre andar com ele preso. Me lembrem disso da próxima vez.

Uma hora Charles diz que é favorável ao livre mercado e tenta sacar minha reação. No outro segundo, ele diz que é socialista. Diz que quer algo como a Coreia do Sul [sic] para o Brasil.

Eu não caio. Não nasci ontem. Ninguém desenvolve um pensamento tão particular sobre as coisas. Não demonstro simpatia por nenhuma ideia que escuto com certo espanto pelo ziguezaguear vertiginoso que ele tece entre os assuntos e opiniões.

Ele pergunta o que eu acho dos índios. Fazemos jogo do sério e tento retornar a pergunta. Dou uma resposta vazia: “Acho que respeito até que é bom”.

“Se eu sou proprietário e alguém tipo você entra na minha terra para atrapalhar a produção e falar mal, eu nem pergunto, eu te fuzilo”.

A provocação é espontânea, em momento algum eu disse algo que o levasse a dizer aquilo. Tenho direito a me defender aqui, né não? Eu não digo nada. Dou uma olhada de soslaio para a ponta da faca. “Puta que pariu… quando eu contar essas coisas vão dizer que é mentira”, penso. “Não fazer duelo com pistoleiro”, relembro a única regra que me foi dada.

Eu e Charles seguimos conversando como se nada fosse nada.

O ônibus freia, suave. O motora me pega de surpresa… Vila Arvoredo*, Km 155*, olha o cacau gigante, não é aqui que a senhora queria descer?

ÉÉÉ, mas já??

Desço atrapalhada com minhas bolsinhas. Charles fica meio inconformado porque não havia descoberto onde eu ia descer.

Ele junta do chão uma nota de dez reais. Deve ser sua. Eu não tenho certeza se deixei cair. Em outra ocasião, teria dito que não era minha e devolveria, mas não era hora de ser boba. Teria a oportunidade de ser isso pelo resto da vida.

Saio do frigorífico causado por um motorista cooperado cheio do calor e tomo contato com uma atmosfera de 45 graus. São 9h48. O ônibus foi mais que pontual, contradizendo as previsões apocalípticas do menino Schubel*. Engraçado, me pego pensando: temos a mesma idade, mas eu não sou a menina Loth.

Vejo o cacau grandão. É feio. Olho para o outro lado e vejo um comércio parco. Uma borracharia e uma lanchonete rosa. Atravesso aquele trecho da Transamazônica. Como uma coxinha e tomo um suco. Ofereço água a uma mulher que espera a netinha e a filha que foram ao posto de saúde. Parece que a espera foi longa naquela manhã.

A mulher ao meu lado é doida pra voltar pra Paraíba, mas se for, não volta mais, por isso não vai. Até já disse pro meu marido. O cacau tá me esperando para ser quebrado na roça. Que agonia. A filha chega com a bebê no colo e as três sobem numa motinho. A bebê faz cara de sério entre as duas mulheres e tudo então some no meio da poeira.

Dona Edith e sua menina, que atende com uma paz de espírito imperturbável, me oferecem a senha do Wi-fi. Funciona bem o negócio.

William Schubel* havia se esquecido de me dizer que só pegava vivo (ou morta, como troçam alguns). Em 40-45 minutos aparece o Márcio da Farmácia, encarregado da missão de buscar a forasteira no bar da Edith.

Mais 7 Km de ar-condicionado e estou na sala dos Schubel. O patriarca toma logo conhecimento de que sou descendente de alemães pelo lado de pai. Fica feliz com essa informação. Para ele, temos algo em comum. Vejo confiança em seu olhar. Dependendo do ambiente, eu destaco minha origem árabe. Não sei quem veio do Norte da África pra Península Ibérica no século X lá vai bolinha. É sempre sábio sacar bem o interlocutor.

*Quilometragens e nomes trocados.

Desertos de areia e sal lagoas de várias cores

Jakaskiwa, a Bolívia do século XXI

Partimos de Florianópolis no final de Julho. Conseguimos nos reunir em Puerto Quijaro, a fronteira Brasil-Bolívia. A fronteira não abriu às 8 horas, pois o sistema havia caído e nenhum servidor, que há menos de uma década fazia as coisas manualmente, agora não fazer nada, era assim mesmo, como se o sistema tivesse vontade própria. Os servidores são reféns do sistema e de seus caprichos aparentemente inexplicáveis. Na volta da viagem, a fronteira também não estava aberta na hora prevista, estava ocorrendo uma greve.

«Historicamente, Santa Cruz, área de grandes produtores, resiste a mudanças desse tipo. Nos anos 50, uma revolução impôs uma redistribuição de terras. Os rebeldes não conseguiram entrar no departamento. Foram repelidos à bala. Santa Cruz tornou-se, por isso, a única região a manter latifúndios. E entre os maiores proprietários está Branco Marinkovic.
Filho de imigrantes croatas, Marinkovic encarna a oposição mais ferrenha a Morales. Dono de um conglomerado que inclui uma das principais fábricas de óleo de soja da Bolívia, o empresário preside o Movimento Cívico Pró-Santa Cruz, principal sustentáculo da campanha pela autonomia. Na cidade, poucos duvidam de que o veto às exportações teve o objetivo de atingir os seus negócios e enfraquecer sua posição política. Marinkovic, apesar de negar a intenção separatista do movimento, não economiza nos comentários jocosos em relação ao governo. “É uma gente incapaz, ignorante”, repete com freqüência em entrevistas nas tevês locais. O governo acusa o movimento cívico de ser financiado pelos Estados Unidos, interessado em derrubar Morales. George Bush, lembre-se, incluiu a Bolívia no “eixo do mal” da América Latina, ao lado da Venezuela de Hugo Chávez». Veja em: http://www.controversia.com.br/blog/entre-cambas-e-collas/

De Quijarro fomos para Santa cruz de La Sierra, a cidade mais rica da Bolívia, onde em 2008 ocorreu um plebiscito para se separar do altiplano.  Por nossas andanças pela Bolívia, as desconfianças, divergências e preconceitos dos chamados cambas e collas entre si ficaram evidentes. Por todos os lugares onde passamos, escutamos e perguntamos sobre o que se achava dos collas para os cambas e vice-versa e escutamos coisas negativas. Os bolivianos nascidos nas planícies, tanto da região Oeste, como Santa Cruz de La Sierra, quanto nas planícies amazônicas foram apelidados de cambas, já os bolivianos nascidos  no altiplano, maioria de origem étnica aimará ou quéchua são conhecidos por collas.

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Líderes pró-oligarquia de Santa Cruz, representados como perseguidos políticos

Quando chegamos a Santa Cruz, na praça central da cidade havia um cartaz de protesto com o rosto de um político local, conhecido como Branko. Membros da oposição cruzenha o consideram um perseguido político do governo do MAS (Movimento al Socialismo) do presidente Evo Moralles.

 

 

 

 

 

 

 

 

Como podemos perceber as disputas político entre o antigo grupo que comandava o poder até 2006, muito ligado à Santa Cruz e à indústria de petróleo, e o Governo de Evo Morales perpassam todas as discussões políticas bolivianas e está muito presente nas ideias sobre política atual das pessoas com as quais tivemos contato, diga-se de passagem, de diversos extratos sociais e de muitas regiões e modos de vida diferentes.   Um exemplo dessa presença é um dos principais assuntos da atualidade: a construção da estrada financiada pelo Brasil em Cochabamba. Grupos indígenas da região e suas comunidades que serão afetadas estão se movimentando contra a construção da estrada, enquanto isso, o governo tem articulado para convencer a população da necessidade do empreendimento para o desenvolvimento da região. A resistência à construção tem aparentemente várias naturezas: certo incentivo das lideranças políticas da oposição à resistência dos grupos amazônicos; uma queda de apoio ao governo por parte das comunidades indígenas; resistência á ideia de progresso e globalização que destruiria os meios de subsistência locais e o entendimento de que o Brasil exerce uma posição de subimperialismo na Bolívia. Passamos pela região que será afetada pela estrada, ela não fica muito longe de Puerto Villarroel, cidade objeto de nossas crônicas também.

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Boliviana de origem quéchua vende frutas e legumes em Feira de domingo na cidade de Sucre

É importante contextualizarmos esta situação, pois ela estará presente em muitos dos diálogos travados com as pessoas da região, das quais procuramos compreender os diferentes pontos de vista que estão ligados aos saberes locais, às práticas e crenças religiosas, experiências pessoas, identidades e ao sentimento de estar ou não sendo representado pelo atual governo (erigido das relações étnicas, muitas vezes conflituosas). Há cinco anos, a Bolívia se declarou um Estado Plurinacional com o intento de legitimar as práticas de organização política e autoproclamação dos povos. Dando, pelo menos na letra da lei, a liberdade de escolher a forma de produzir e modo de gestão das necessidades em cada comunidade soberana.

Para algumas comunidades indígenas, a democracia representativa não é o ideal. O fato de que algumas pessoas não concordam com a decisão, mesmo que sejam minorias, faz com que a coesão da comunidade fique muito prejudicada, sendo assim, em algumas comunidades as questões são discutidas até que se entre em consenso, ou seja, que se entre em um acordo. O processo decisório é mais lento e imprevisível, os prazos não são tão rígidos, como num parlamento das democracias liberais. As noções do que é um crime hediondo também mudam de cultura para a cultural. Para grupos indígenas a terra é a mãe, ou seja, vender a mãe é o crime mais bárbaro que existe.

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Cholas aimarás carregam folhas de coca pela estrada que liga La Paz à Copacabana, cidade à beira do sagrado lago Titicaca

A ideia boliviana foi perceber que passar por cima dessas diferenças de concepção social em nome de uma coesão nacional e inclusão da nação no plano global só fomentaria ainda mais a exclusão dos grupos indígenas das decisões nacionais. Sem levar em conta a soberania dos povos, o governo boliviano estaria promovendo ainda mais a opressão cultural. Estes fatores fizeram com que o governo bolivano aja com mais cautela em relação à construção da estrada.  Isto complexifica as questões em relação ao plebiscito da estrada. Se a maioria que a estrada ela deve ser construída contra a vontade dos povos que habitam as redondezas?

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Militante anti-capitalista e adepto de um sincretismo religioso incaico-cristão protesta sozinho contra o imperialismo na praça Murilo em La Paz

Outro fator central, que também envolve as concepções de desenvolvimento e de “progresso”, é a necessidade boliviana de construir estradas que diminuam os custos com transporte de mercadorias, fomentando a industrialização, e facilitando o acesso das pessoas às diferentes regiões do país. Em relação a isso, em nossa viagem presenciamos rodovias que promovem risco real à integridade física dos passageiros. Mas seria uma intensa industrialização a solução para a diminuição da pobreza na Bolívia? Todos os cidadãos têm a mesma necessidade? Em Puerto Villarroel, já na porta da Amazônia, escutamos uma música com características do folclore boliviano que fala sobre este tema. Satirizando a aparição comum de sociólogos e antropólogos na Bolívia para estudar o funcionamento de comunidades indígenas. “Porque não estudam seus avós” diz o cantor que questiona o status do povo boliviano como um povo pobre conferido pelas nações Ocidentais. A verdade é que para os ocidentais o poder de compra, consumo e os índices do progresso são confundidos com bem estar e riqueza. Seria mesmo a falta de infraestrutura, a falta de regras “civilizatórias” que fazem com que o povo boliviano tenha ruins condições de vida?

Sobre o assunto sugerimos a leitura da tese de doutorado do urbanista Max Antonio Arnsdorff  sobre a convivência de duas Bolívias: uma do ayllu e outra do capitalismo:

http://teses.ufrj.br/IPPUR_D/MaxAntonioArnsdorffHidalgo.pdf

O livro Bolívia, jakaskiwa da geógrafa Mariléa Leal Caruso e do jornalista Raimundo Caruso é uma referência para entender o processo político boliviano na contemporaneidade. O livro é composto por dezenas de entrevistas com intelectuais, ex-guerrilheiros, ministros e líderes comunitário bolivianos:

Livro de entrevistas sobre as singularidades políticas, culturais e sociais da Bolívia do século XXI.
Livro de entrevistas sobre as singularidades políticas, culturais e sociais da Bolívia do século XXI.

 

Assista à reportagem da Hispan TV sobre a festa de aniversário dos quatro anos da criação do Estado Plurinacional de Bolívia

Reportagem da Telesur sobre os dois anos do Estado Plurinacional:

Uma trilha, três dias, dois biomas: de 4000 metros de altitude até yungas, região semi-amazônica

O caminho da famosa trilha de três dias parte de uma localidade alta da região de La Paz, a mais de 4000 metros de altitude, onde respirar e caminhar, sobretudo, quando o solo é íngreme, é um desafio. O guia que iria conosco chamava-se Benício. Falava um espanhol bem indígena que só existe na Bolívia, tinha o costume de inverter os verbos nas frases da seguinte forma: «és bonita la paisaje». Benito já havia trabalhado nas fábricas de costura de São Paulo e voltou com algum dinheiro para ajudar a família. Ele carregava na mochila todos os suprimentos da trilha: comida e fogareiro. Nós carregávamos uma mochila com algumas roupas e uma barraca. O resto de nossas coisas seria despachadas pelo escritório de turismo que nos arranjou o guia e a comida. A probabilidade de que as bolsas nunca chegassem a Coroico não era pequena.

Chegamos a cogitar fazer o caminho  saindo da base do Huayna Potosí, mas o percurso duraria um dia a mais e teríamos que caminhar sobre a neve alguns quilômetros.

A oficina não nos deu nenhum equipamento, a responsabilidade era toda do guia. Chegamos à conclusão de que ele receberia uma parcela insignificante dos 1600 bolivianos que pagamos à Oficina, o ideal teria sido fazer contato direto com um guia. Aprendizado que aplicamos em Rurrenabaque, quando contratamos um guia sem intermediários.

Apesar do frio, do ar rarefeito e das coisas que tínhamos que carregar, esta primeira parte da trilha foi tranquila.O caminho era formado por pedras irregulares, soubemos que ele havia sido aberto pelos incas. Há relatos que a trilha fazia parte de uma grande rota por onde se comunicavam muitos povos indígenas antes da invasão europeia, o lendário caminho do Peabiru. Indigenistas, como Rosana Bond,acreditam que foi por intermédio desta rota que os Guaraní fizeram contato com os povos andinos.

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Parada para descanso

 

Passamos por rebanhos de llamas, riachos, diferentes relevos, neblina e uma vegetação rasteira e escura. O dia estava fechado nas alturas, mas aos poucos fomos descendo e o tempo foi ficando menos carrancudo. Paramos para almoçar em uma cabana, onde estavam alguns moradores de pequenas vilas da região.DSCF5027

Com o transcorrer da caminhada, a mata foi adquirindo uma tonalidade mais viva e mais clara, o frio foi diminuindo, o ar parecia mais puro e aconchegante, os raios de sol dissiparam a névoa e a água era cada vez mais frequente entre as pedras. Meu tênis velho e que não servia para aquele tipo de empreitada ficou completamente encharcado. Comecei a ter dificuldades de caminhar, meu pé inchou e enrugou. Benício ficou preocupado e me deu uma de suas bengalas de caminhada. Mas as pedrinhas desalinhadas machucavam meu pé. Ele ficou perplexo com o fato do meu pé estar encharcado e disse: «Isto é ruim, não é bom». Então, ele rasgou dois pedaços de papelão e  me deu para  usar como uma espécie de palmilha. Logo, o papel esfarelou-se e passou a incomodar a sola do pé, de nada tinha adiantado para absorver a água.

Comecei a ficar para trás em todos os trechos, os dois homens tinham que parar para me esperar. O guia ficou impaciente e disse: «Deste jeito, não vamos chegar nunca».  Meu tênis parecia uma esponja, a cada poça ou corrente de água entre as pedras, onde pisava sem escolha. Paramos para comer em uma grande rocha perto de uma queda de água, já era meio da tarde e o sol estava forte.

Antes do anoitecer chegamos ao primeiro acampamento. A área era dividida por uma ponte pênsil sobre um rio cor de  esmeralda, por conta dos minérios andinos. Montamos a barraca na parte de cima e comemos a refeição preparada por Benício em uma cabana perto do rio. Na oficina, haviam entendido que nós éramos vegetarianos, por isso o guia nos serviu macarrão com almondegas de soja. Mas tarde ele ironizou Ernesto pela frescura, assim, acabamos descobrindo o engano. Tomamos chá de mate para esquentar. Antes de dormir Benito acendeu uma fogueira e colocou meu par de tênis na frente dela por toda a noite. Nossos corpos estavam quebrados quando deitamos no chão duro da barraca.

O dia começou antes das seis da manhã. Tivemos que vestir as mesmas calaças sujas de barro. Deixamos o acampamento, entrando em uma mata mais fechada, tropical e por uma trilha cada vez menos  domada pelo ser humano. Em certas partes, sobretudo, nas descidas íngremes dentro da mata, tínhDSCF5075amos que nos segurar em raízes e galhos. Meus pés não firmavam e minhas panturrilhas estavam latejando. Comecei a ficar de mal humor e me arrepender de ter entrado no que me parecia uma cilada.

Para piorar, Benício começou a dizer que não iríamos conseguir chegar ao acampamento em tempo e que nunca tinha demorado tanto na caminhada, minha relação com ele ficou constrangedora, eu tinha vergonha de estar atrasando, mas achava injusto as coisas que ele dizia.

Chegamos a um ponto da trilha,onde tínhamos que escolher entre: equilibrar-se em pedras sobre a forte correnteza de uma cachoeira ou passar por cima de uma ponte, que já não era mais ponte. Subi na ponte que não tinha mais tábuas num trecho de mais de um metro. A única opção era se equilibrar nas bordas de ferro da ponte e segurar no apoio lateral. O problema era que a visão dava muito medo, era assustador olhar para baixo e pensar em cair nas pedras e na correnteza, a altura não era insignificante.  Ernesto passou relativamente rápido pela ponte, mas eu não quis correr o risco e passei por baixo com ajuda das mãos  e das instruções de Benício, mas uma vez dava sinais de fraqueza diante dele. Acabei molhando os pés de praxe.

Depois de um dia de mais de 12 horas de caminhada, chegamos ao primeiro acampamento disponível, segundo o guia, não era o ideal. Era um local bem isolado, parecia uma grande varanda com vista para a floresta, se não fosse, a intensa névoa que embaçava a visão até das bananeiras próximas.

Acordei disposta a superar as dificuldades e andar mais rápido que o guia e Ernesto. Cantei a plenos pulmões todas as músicas que sabia e caminhei o mais rápido que pude, quase apostando corrida com os outros. Lá atrás Benício dizia: «Mulheres, mulheres. São difíceis». Ele tinha concluído que eu era louca.

Chegamos a Coroico, cidade que fica na região de yungas, o bioma de transição entre o altiplano e Amazônia. É uma cidade de 800 metros de altitude cercada por florestas. Dividimos um táxi com um casal de portugueses. Só sonhava com um banho. Na rodoviária, tínhamos que esperar as mochilas chegarem, o ônibus que as deveria trazer estava atrasado. Benício chegou a tempo para pegar seu ônibus de volta para La Paz, o que temia não dar certo, a viagem de volta era de três horas. Na despedida, demos cem bolivianos para ele de gorjeta, cerca de 30 reais, porque sabíamos que as oficinas não pagavam valores justos para os guias.  Ele agradeceu e nos também. Ernesto pediu seu telefone para chamar ele para tomar uma cerveja, o que nunca aconteceu. Enquanto, dormíamos nos bancos da rodoviária o ônibus de La Paz chegou e nossa bagagem estava lá, para alívio geral.

Naquela região, os bolivianos comem carnes com ovo e arroz no café da manhã. As pessoas parecem menos solidárias do entre si e com os estrangeiros do que no altiplano. A única coisa que fizemos em Coroico foi uma caminhada até uma cascata muito alta. As bolivianas se banhavam no poço da cachoeira de roupa de verão, nunca de biquíni, isto constatamos por todos os locais de banho público que passamos.

No dia seguinte, descemos mais um pouco em direção à Amazônia, até Caranavi, uma cidade pequena e quente. Tínhamos o plano de seguir pela Amazônia Boliviana e voltar por Rondônia. Procuramos informações na rodoviária da cidade e estávamos cogitando comprar passagens para cidades que nunca tínhamos escutado o nome, até que tivemos a informação de que as estradas eram muito ruins, muitas de terra e a época era de chuvas e alagamentos, ou seja, não era incomum ficar ilhado em uma cidade ou vilarejo por dias a fio esperando a reabertura da estrada. O dinheiro também estava acabando e desistimos, com tristeza, da aventura. A decisão foi de supetão e  entramos em um táxi coletivo que ia direto a La Paz. Nossa viagem poderia terminar com mais aventura, mas terminou quase tranquilamente em Sucre.

 

 

 

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A Vila de Sajama, a velha de Sajama

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Ponte misteriosa que liga a vila ao pasto das llamas
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Casas de barro construídas para barrar o intenso frio, às vezes temperaturas negativas
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Rebanho de llamas curiosas olhando em direção ao sol
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Ruminante andino, sua carne serve de alimento, sua lã é muito quente
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Cercado para proteger as llamas dos chacais durante a noite
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Igreja do século XVI

         À sombra do
monstruoso gigante alvo e gelado Sajama moram uma centena de pessoas em casas de barro. A montanha de mais de 6.000 metros divide Chile e Bolívia. Os aldeões criam llamas para fazer lã e carne ou ganham algum dinheiro hospedando estrangeiros. O parque com buracos que soltam água fervente e montes com gigantismo recebe montanhistas de olhos claros e gente que crê em algum misticismo. Contam as cholas bolivianas que uma figura deste tipo desapareceu nas alturas quando saiu para meditar nas montanhas, apenas encontraram suas roupas e pertences ao lado de um gê
iser borbulhante. É provável que em Sajama andem mais llamas do que gentes. Estes estranhos animais, para não serem devorados por chacais, dormem em cercados sinistros que parecem estacas de madeira no meio do nada.

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Crianças caem das bicicletas apostando corrida

Fazia frio intenso e a neve úmida estava prestes a cair. Para sair d
os limites do parque depende-se de uma van que só parte apinhada de gente algumas horas antes da alvorada. O veículo vai até a cidade mais próxima, de onde se costuma partir para a grande cidade que cresceu dentro de um vale profundo, La Paz.

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Chapa fotovoltaica auxilia no abastecimento energético

A aldeã Maria tem uma venda, onde se compra papel higiênico, bolachas, sucos, macarrão e chocolates que não têm gosto de chocolate. Também vende ponchos, mantos de lã típicos, desayuno, almuerzo e cena. Ela estava sentada no primeiro degrau da porta, descansando por um momento, quando os forasteiros chegaram. Já é idosa, usa uma saia rodada longa, um casaco e um chale quentinho que acompanha o comprimento das tranças negras. Quando levanta pela manhã para cuidar de seu rebanho de ruminantes andinos, lembra-se dos três mandamentos incaicos: “Ama sua, ama llulla, ama quella” (“Não roube, não mintas, não seja preguiçoso.”). Ela é uma figura imponente, transmite mais saber e dignidade que o próprio Sajama nevado.

Os quatro estrangeiros entraram no pequeno estabelecimento para comer. Sem perguntar o que queriam exatamente, Maria serviu quatro pratos de sopa morna com pedaços de llama, batata e acompanhamento de pão dormido. Ninguém se atreveria a pedir para esquentar a comida ou outra extravagância qualquer. Aquele espaço era a casa da aldeã, onde vigoravam suas regras e sua ordem de mundo. E assim foi todos os dias, nas três refeições, a mesmo prato. Sua presença forte e sábia intimidava os urbanóides. Quando ela perguntava se os viajantes tinham gostado da comida, eles quase tremiam. Deixar um grão no prato parecia uma terrível ofensa.

A chola fazia poucas perguntas. Indagou sobre a viagem: para onde estávamos indo e de onde viemos. E assentia com a cabeça ou franzia o cenho em uma atitude de distanciamento e largueza. Às vezes troçava, repetia uma frase mal formulada que alguém dissera e quase sorria. Não conseguia não achar gozado o jeito daqueles jovens que ficavam nervosos ao pedir uma bebida. Pareciam não ter mais o que fazer, porque  saíam de sua terra para estar ali, onde tudo era normal, pareciam sofrer de uma estranha futilidade.

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Géisers: podem ser alcançados por caminho de duas horas desde a aldeia

– Que horas devemos sair para ver a fumaça dos gêiseres?

– Umas 6:15.

– É bonito lá.

– Sim muito. Os que vêm aqui sempre vão lá.

Na última noite, uma das viajantes já estava afetada pelo sofrimento causado pela velha de Sajama. Sentia que ela a vigiava, reparando cada d
etalhe: como comia, o quanto e se gostava. Além de observar o que dizia, como se vestia e até o que pensava, Maria parecia ter esse atributo sobrenatural. A estrangeira acreditava que Maria estava maltratando-a e servindo comida cada vez mais fria e sem sal. Numa tarde, sentiu-se mal por conta da escassez de oxigênio e não foi com os outros almoçar. A senhora sentiu a ausência da niña e deu uma risadinha quando soube do mal estar. No dia seguinte, tentou-se comer em outro lugar que não na venda, mas foi em vão, era o único local organizado suficientemente para lhes servir.

Na última noite, os quatro foram tomar uma cerveja, Paceña, à temperatura ambiente, como tomam os bolivianos. Estranharam a presença de duas mulheres, um italiana, uma escandalosa espanhola e um senhor argentino metido a sagaz.

A italiana, Jessica, queria comprar meias, toucas e cachecóis para vender em Euros na cidade de Nápoles. Insistiu em saber se as peças eram de verdadeira lá de alpaca ou meramente sintéticos. Maria respondeu:

– És pura alpaquita, pura alpaquita.

O senhor argentino interpretando o papel de um especialista da indústria têxtil disse: “Yo ya trabajei con esto.” E certificou que Jessica podia confiar que era pura alpaca mesmo. A italiana comprou um quilo de peças para descobrir por acaso, em La Paz, que tudo que comprou era puramente sintético.