«Meu destino é correr mundo mesmo», Iracema em Uma Transa Amazônica.
- “Charles”
Tomamos café em Medicilândia logo depois de passar pela cara gigante do Bolsonaro no outdoor. Eu fico matutando dentro da minha cabecinha: “MÉ-DI-CI… lândia”. Saio do ônibus e falo pro motorista: “ooooo homi calorento”. “É frio mesmo”, ele diz.
Entre Medicilândia e Uruará, dentro do micro da COTAIT, uma senhora reclama: “Tá espirrando água do ar-condicionado, seu motorista. Que ar frio é esse? Não tô em Curitiba não”.
Para fugir da chuva artificial, Charles senta ao meu lado. Duvido que esse seja seu nome verdadeiro. Vejo com o canto do olho que ele traz uma faquinha de serra dentro da mochila. Reparo na pontinha brilhante.
Sem muitas delongas ele espontaneamente conta que trabalhou uma semana numa roça de cacau. É tipo trabalho análogo à escravidão. Olha aqui a minha mão calejada. Enquanto eu estava lá, dois foram picados por escorpião.
É uma isca. Num sou peixe ainda.
Não morreram, segundo ele. Ninguém morre disso, completa.
Ganhou 50 reais por diária. Gostou do que viu. Nunca conviveu com povo mais feliz. As pessoas dormiam e acordavam rindo. Quer comprar uma terra e trabalhar com isso.
Vem de São Paulo. É comerciante e está a caminho de um rodeio, onde venderá cachaça e outros tragos. Estive no mesmo rodeio uns dias depois. Fui levada por uns amigos que fiz pegando carona no Balneário Recanto em Uruará. Eles também se dedicavam à venda de bebidas em eventos do interior.
Até então a história de Charles tinha alguma coerência, mas, não mais que de repente, ele bota tudo a perder: “Morei em mais de quarenta países: Uzbequistão, Turcomenistão, Estados Unidos, todos os países da América Latina. Em todos os estados do Brasil”.
Ele vai bem na geografia, mas se perde quando eu o testei sobre sua temporada no México. Ele dá a desculpa que só conheceu Guadalajara mesmo, nem saiu de lá. Não sabe localizar Acapulco no mapa. Diz que não é necessário dinheiro para viajar e dá uma piscadela forçada e performática. Acrescenta um clic com a língua, como se já não bastasse o gesto. Pergunto como ele faria para ir ao Canadá de carro. Quase que o meu amigo tropeça no canal do Panamá.
Ele me testa. Joga verde. “Você precisaria de pelo menos mais três faculdades para começar a entender isso aqui e fazer este seu trabalho: Agronomia, Direito e Economia”, conclui.
Concordo.
Ele infere que sou dos “direitos humanos”. No outro ônibus, concluíram que eu era ambientalista e que deveria ir negociar com os índios Araras que estavam fechando a estrada. Os “pajés” iam deixar o ônibus passar se soubessem que eu era “ambientalista”. Eu não havia nem aberto a boca. Deve haver algo de errado com o meu cabelo. Eu já sabia disso… ele me delata. Devo sempre andar com ele preso. Me lembrem disso da próxima vez.
Uma hora Charles diz que é favorável ao livre mercado e tenta sacar minha reação. No outro segundo, ele diz que é socialista. Diz que quer algo como a Coreia do Sul [sic] para o Brasil.
Eu não caio. Não nasci ontem. Ninguém desenvolve um pensamento tão particular sobre as coisas. Não demonstro simpatia por nenhuma ideia que escuto com certo espanto pelo ziguezaguear vertiginoso que ele tece entre os assuntos e opiniões.
Ele pergunta o que eu acho dos índios. Fazemos jogo do sério e tento retornar a pergunta. Dou uma resposta vazia: “Acho que respeito até que é bom”.
“Se eu sou proprietário e alguém tipo você entra na minha terra para atrapalhar a produção e falar mal, eu nem pergunto, eu te fuzilo”.
A provocação é espontânea, em momento algum eu disse algo que o levasse a dizer aquilo. Tenho direito a me defender aqui, né não? Eu não digo nada. Dou uma olhada de soslaio para a ponta da faca. “Puta que pariu… quando eu contar essas coisas vão dizer que é mentira”, penso. “Não fazer duelo com pistoleiro”, relembro a única regra que me foi dada.
Eu e Charles seguimos conversando como se nada fosse nada.
O ônibus freia, suave. O motora me pega de surpresa… Vila Arvoredo*, Km 155*, olha o cacau gigante, não é aqui que a senhora queria descer?
ÉÉÉ, mas já??
Desço atrapalhada com minhas bolsinhas. Charles fica meio inconformado porque não havia descoberto onde eu ia descer.
Ele junta do chão uma nota de dez reais. Deve ser sua. Eu não tenho certeza se deixei cair. Em outra ocasião, teria dito que não era minha e devolveria, mas não era hora de ser boba. Teria a oportunidade de ser isso pelo resto da vida.
Saio do frigorífico causado por um motorista cooperado cheio do calor e tomo contato com uma atmosfera de 45 graus. São 9h48. O ônibus foi mais que pontual, contradizendo as previsões apocalípticas do menino Schubel*. Engraçado, me pego pensando: temos a mesma idade, mas eu não sou a menina Loth.
Vejo o cacau grandão. É feio. Olho para o outro lado e vejo um comércio parco. Uma borracharia e uma lanchonete rosa. Atravesso aquele trecho da Transamazônica. Como uma coxinha e tomo um suco. Ofereço água a uma mulher que espera a netinha e a filha que foram ao posto de saúde. Parece que a espera foi longa naquela manhã.
A mulher ao meu lado é doida pra voltar pra Paraíba, mas se for, não volta mais, por isso não vai. Até já disse pro meu marido. O cacau tá me esperando para ser quebrado na roça. Que agonia. A filha chega com a bebê no colo e as três sobem numa motinho. A bebê faz cara de sério entre as duas mulheres e tudo então some no meio da poeira.
Dona Edith e sua menina, que atende com uma paz de espírito imperturbável, me oferecem a senha do Wi-fi. Funciona bem o negócio.
William Schubel* havia se esquecido de me dizer que só pegava vivo (ou morta, como troçam alguns). Em 40-45 minutos aparece o Márcio da Farmácia, encarregado da missão de buscar a forasteira no bar da Edith.
Mais 7 Km de ar-condicionado e estou na sala dos Schubel. O patriarca toma logo conhecimento de que sou descendente de alemães pelo lado de pai. Fica feliz com essa informação. Para ele, temos algo em comum. Vejo confiança em seu olhar. Dependendo do ambiente, eu destaco minha origem árabe. Não sei quem veio do Norte da África pra Península Ibérica no século X lá vai bolinha. É sempre sábio sacar bem o interlocutor.
*Quilometragens e nomes trocados.